O incômodo é antigo. A
vontade de abordar o assunto também. Talvez a oportunidade para tal seja esta,
a partir de um excelente e indispensável artigo escrito pelo eminente pastor
Renato Vargens (veja blog). Exatamente porque aquele brilhante comentarista se
antecipou ao que eu pretendia, sinto-me lisonjeado por verificar que o nobre pastor concorda com o que penso a respeito das letras de canções "gospel".
Tenho, como o pastor Renato
e, talvez outros, certo ressentimento por causa do descuido que não poucas
igrejas têm para com os hinários oficiais. Fui criado entre esses hinários.
Minha mãe nascera numa família presbiteriana; então, cantava sempre as
composições inspiradas do hinário Salmos
e Hinos. Entretanto, sendo ela batista, passou a nos ensinar o Cantor Cristão. Casada com meu pai,
assembleiano, adotou o hinário oficial dessa igreja, a Harpa Cristã. Por isso, posso dizer que cresci entre os mais
inspirados hinos evangélicos, o que pode até ser causa de certa ranzinzice.
Dizia eu da tristeza de ver
que, em muitos cultos, em grande parte das igrejas, o hinário oficial foi
substituído por composições de qualidade musical duvidosa e letras nada
melhores do que isso. Não entrarei, agora, no mérito das estruturas musicais:
quero mencionar as letras. Por respeito àquele articulista, não mencionarei
exemplos, mas o texto a que me refiro exemplifica muito bem a falta de pudor do
letrista.
A questão, aqui, coincide
com o que expõe Renato Vargens, sobre certas canções: frivolidade,
antropomorfização exagerada do divino, linguagem tendente à sensualidade. Tudo
isso é justificado com uma explicação sem graça: desejo de mais intimidade com
Deus.
É necessário que se entenda
que intimidade não equipara as relações: por mais intimidade que um mordomo
possa desfrutar com o rei, os limites são invioláveis. Que se dirá da
intimidade com Deus! O mais relevante fator de intimidade com Deus é a oração,
não a cantoria. O salmista diz que Deus não despreza um coração contrito (Sl
51.17; Is 57.15).
Canta-se muito uma letra que
diz: “Estou apaixonado”. Esse adjetivo é cognato do substantivo “paixão” que,
do latim, significa, em primeiro plano, sofrimento. Evidentemente, a palavra
assume outros significados, dependendo do contexto.
Na linguagem atual do
Brasil, entende-se que o apaixonado entra em sofrimento por não alcançar o bem
pretendido, ou lhe devota um amor intenso; porém, esse é um amor erótico (do
masculino pelo feminino), ou, em linguagem figurada, a dedicação extrema a
familiares (apaixonado pelo filho). Note-se, então, que sempre expressa uma
relação entre iguais ou trazidos a esse nível. Se eu disser “sou apaixonado
pelo presidente”, sem dúvida, estou fazendo uma hipérbole, um exagero de
expressão. Ser apaixonado por assuntos ou por coisas também expressa a
hipérbole. Não estou apaixonado por Deus, eu o amo, anseio pela presença do
Senhor em minha vida. É uma questão de nível de linguagem. Dizer-se apaixonado
por Deus é, no mínimo, mau gosto de linguagem.
Já ouvi críticas à linguagem
usada nos hinários, ou nas traduções mais clássicas da Bíblia. De fato, nesses
casos está empregado um vocabulário mais selecionado, até erudito; contudo,
condizente com a nobreza do texto. A “simplificação” da linguagem, pode até ser
necessária em muitos casos, entretanto, não autoriza que se despreze o bom
vocabulário. No caso das Bíblias, muita “linguagem de hoje” (?) deturpa o
texto.
Quando um grupo canta “estou
apaixonado por você, Jesus”, usa uma linguagem bem diferente daquela usada pelo
salmista que diz: “minha alma anseia por ti” (Sl 143.6). Qual é mais apropriada
para nos dirigirmos Àquele a quem amamos?
O empobrecimento da
linguagem mostra o empobrecimento dos costumes, o desprezo pelo conhecimento, a
cegueira do Belo. Linguagem empobrecida não é causa em si mesma; é resultado de
toda a degeneração intelectual e comportamental das pessoas. Somos criados para
o crescimento, não para a degenerescência, ainda que todo exagero deva ser
evitado. Nem tanto ao mar; nem tanto à praia. Estamos já encalhando na praia.
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