quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

O SER HUMANO NÃO FOI CRIADO NO CÉU








Introdução

Num desses dias, critiquei, na minha página do Facebook, algo que me deixou muito incomodado: o emprego das palavras lembrança e saudade, nos versos de dois hinos que se encontram no hinário Harpa Cristã, respectivamente, os de números 2 e 36.

Esse incômodo - de natureza semântica - leva-me a meditar e a inquirir sobre a criação do homem, com base no ponto de vista tricotomista (o homem é formado de corpo, alma e espírito).

 

Não restam dúvidas de que Deus, tendo criado a Terra com todos os seres vegetais e animais (Gn 1.24-25), por último, formou, do pó da terra, o homem/corpo (Gn 2.7a). Entretanto, é certo que existem, no mesmo homem/corpo, o homem/espírito e o homem/alma, perfazendo uma só unidade, o indivíduo. O homem/corpo só se tornou alma vivente, depois que o Senhor soprou nele o espírito de vida (Gn 2.7b).


É inegável que o corpo humano é terreno; pois, sendo feito do pó da terra, é absolutamente material e finito (Gn 3.19). O espírito e a alma, porém, não são materiais (logo, não são finitos); não foram formados do pó da terra. A Bíblia diz que Deus soprou o fôlego da vida nas narinas do ser que formara, por isso, aquela criatura se tornou alma vivente; noutras palavras, o homem, que era apenas pó, tornou-se um ser que tem vida, no sentido mais amplo da palavra vida, envolvendo todas as funções do corpo físico, envolvendo as funções cerebrais, ou da mente, e as funções do espírito.

Este texto não pretende discorrer, de modo específico, sobre a natureza tricotômica do homem. O objetivo é esclarecer o incômodo semântico, causado pelas duas palavras mencionadas naqueles hinos. Para tanto, julgo necessária uma breve reflexão sobre a diferença entre a origem do espírito e a origem da alma; uma vez que o corpo tem origem, evidentemente terrena. Talvez, essa abordagem proposta, conduza-nos a concluir que o ser humano, embora criado pessoalmente por Deus, não foi formado em ambiente celestial; o Senhor Deus o criou aqui na Terra mesmo. Se assim é, nenhum ser humano pode ter uma saudosa lembrança do Céu (hino 2); também, é impossível que tenha saudade de Jesus (hino 36), uma vez que essa pretensa saudade colidiria com as palavras do próprio Senhor (Jo 14 1.3). O homem pode, sim, estar ansioso por chegar ao Céu. O hino 279, do mesmo hinário, refuta o que dizem os de número 2 e 36.


“Jesus me falou de um formoso lugar;/Ali quero ir, e tu?”




  1. A ORIGEM DO ESPÍRITO HUMANO


Será fato incontestável que o espírito humano, provindo de Deus, para que o homem viesse à vida, torna esse homem um ser originário do céu? Parece ser claro que não. O escritor de Eclesiastes tende a considerar o espírito (que volta para Deus) como um empréstimo do Criador ao homem. Leia-se Eclesiastes, 12.7.


Creio que essas considerações esclarecem que o homem não é um ser trazido a esta terra, como sugere o hino 2, mencionado, nem originado na glória celestial para que, neste mundo, dela tivesse lembrança saudosa. O ser humano jamais morou em outro lugar. Este planeta é o seu lar, preparado por Deus, para a sua vida terreal.


“Os céus são os céus do Senhor, mas a terra, deu-a ele aos filhos dos homens” (Sl 115.16).




Em princípio, é necessário que se compreenda a diversidade de sentido da palavra espírito; em nossa língua os vocábulos se revestem de plurissignificação. Em Nm 14.24, a palavra espírito aparece como disposição, ânimo; em Pv 16.32, está empregada como tendência, inclinação; como estado de vigilância, ocorre em Mt 26.41; como demônio, está registrada em Lc 4.36 etc. Como sopro ou fôlego de vida, está empregada em Gn. 2.7. É nessa última concepção que nos prendemos aqui.

Nesse caso, a palavra espírito nomeia o hálito vital que, soprado por Deus, deu ao corpo humano uma vida terrena, entre o nascimento e a morte. O homem, por causa do espírito, foi feito alma vivente neste mundo.


O termo bíblico alma vivente também carrega importante significado atribuído à palavra alma. Considerando-se que a alma, em si, é imortal, qual a razão de a Bíblia parecer redundante, quando diz alma vivente, isto é, alma que vive? É compreensível que essa expressão signifique que a alma se mantém ligada à matéria (corpo), por meio do sopro de vida (espírito), no decorrer da trajetória humana na Terra. Findo o tempo de vida da matéria, o espírito e a alma, que é vivente, afastam-se do corpo.


“... e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu.” (Ec 12.7).


Creio que essas considerações esclarecem que o ser humano não foi trazido a esta Terra, nem foi originado na glória celestial. Portanto, não há como ter a saudosa lembrança como sugere a letra daquele hino mencionado. O homem foi criado na Terra, para viver na Terra.


“Os céus são os céus do Senhor, mas a terra, deu-a ele aos filhos dos homens” (Sl 115.16).



A noção aqui levantada rebate o que o poeta faz entender com o uso da palavra saudade no hino em apreço. Ninguém pode ter saudade de um lugar em que jamais esteve, nem de alguém com quem não conviveu materialmente! A vida celestial está, sim, prometida ao ser humano, após o retorno do corpo ao pó da terra. Esse corpo terreno será ressuscitado em corpo glorioso (1Co 15.21-23; 42-44; 49).

O espírito é o fôlego dado ao homem, por Deus, de modo muito especial. Digo de modo especial, porque também aos animais Deus deu fôlego; mas não soprou neles esse fôlego. (Gn 1.20-28).

Serão o espírito e a alma um mesmo ente? Não vou entrar nas discussões mais profundas sobre esse assunto; não vou caminhar pela análise das teorias monista (o homem é apenas corpo, portanto, finito), dicotomista (o homem é composto de espírito e alma, os quais são um só elemento) ou tricotomista (o homem é formado de corpo, espírito e alma, sendo, estes, elementos distintos); ainda que o meu viés se apoie na tricotomia.

A intenção, neste texto, é, tanto quanto possível, evitar que se considere o fato de o homem ter sido criado por Deus, de modo tão especial, uma justificativa para se considerar que ele seja proveniente do Céu. A Bíblia é suficientemente clara para informar a condição terrena do homem, ainda que passageira. É na terra que o homem deverá escolher o seu futuro: no Céu, se aceitar o dom da salvação em Cristo; no inferno, se rejeitar essa dádiva tão maravilhosa.

Os únicos seres, realmente originários do Reino Celestial, que, neste tempo, operam no mundo terreno, são o diabo e seus anjos. Todavia, esses seres maléficos não têm saudade do Reino Celeste, pois se fizeram inimigos de Deus e de sua criação sobre a Terra.

 



  1. A ORIGEM DA ALMA

Os diversos sentidos da palavra alma, na Bíblia, devem ser esclarecidos. Primeiro, ensina o dicionarista cristão, Orlando Boyer, em sua conhecida obra Pequena Enciclopédia Bíblica, que o vocábulo hebraico nephesh (alma), é traduzido mais de 500 vezes, no Antigo Testamento, e do grego, psyche (alma), mais de 30 vezes, no Novo Testamento. Alma é tomada no sentido de animais viventes e no sentido de seres humanos.

Boyer ensina que, como definição, a palavra alma pode ser entendida como:


“substância incorpórea, imaterial, invisível, criada por Deus à sua semelhança, fonte e motor de todos os atos humanos.”


O espírito é a fonte de vida, provinda do sopro do Criador. O espírito, dado ao homem, de forma especialíssima (Deus soprou a vida no homem), acompanha-o, como já afirmei, do nascimento à morte física.

Todavia, o homem não é apenas um ser que respira; ele pensa, decide entre o Bem e o Mal, expressa sentimentos, tem autonomia na mundividência, reconhece o seu Criador, ou decide ignorá-lo.

O mais importante, nesse aspecto é que Deus fez do homem um ser livre para escolher o seu mais completo “modus vivendi” neste mundo. Por isso, Deus o fez à sua imagem, conforme a sua semelhança, dando-lhe competência criativa, livre arbítrio, e senso moral.

Esses atributos, porém, não são atributos do espírito, mas da alma. A preocupação com a origem da alma ocupa as mentes mais brilhantes, desde a Antiguidade; logo, não é aqui que se decidirá a questão. Todavia, é possível dizer que a alma humana é um benefício divino que faz do homem um ser moral. É por esse senso moral que o indivíduo discerne o Bem e o Mal. É por essa consciência, um dia afetada no Éden, que não há no homem natural a busca do Bem. O pecado, que é a transgressão da lei divina, nasce na alma. 

Toda a distinção entre o ser humano e as demais criaturas de Deus é manifestada por meio da alma. A alma é o elemento que faz do homem um ser especial entre os viventes: ela é a fonte da personalidade humana. Vem da alma a manifestação dos processos mentais determinantes da sua maneira de agir e reagir neste mundo.

A alma é a mente, a qual expressa os impulsos e reações do cérebro. Mesmo depois do pecado adâmico, a alma não conseguiu desfazer-se da ansiedade pelo seu Criador. A felicidade - ou a infelicidade - de um indivíduo está na satisfação ou na insatisfação dessa ansiedade. O apóstolo Paulo diz que o salvo tem a psyche (a alma, a mente) de Cristo. (1Co 2.16)


Conclusão

Consequentemente, parece ser correto entender que  nem a alma, nem o espírito são componentes que façam do homem um ser “vindo do céu”, ainda que o espírito e a alma sejam elementos criados por Deus, para formar o homem pleno, conforme à sua imagem e semelhança. A imagem e a semelhança de Deus foram afetadas pela decisão da alma – que é a mente - ao desonrar ao Deus Criador.

O resgate dessa alma pecadora e destituída da glória de Deus (Rm 3.23), só é possível no conhecimento e reconhecimento de Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1.29).


“Quem nele crê não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no Nome do Filho unigênito de Deus.” (Jo 3.18).


Quanto a ter saudosa lembrança do Céu (hino 2 H.C.) ou saudade de Jesus (hino 36 H.C.) são proposições incorretas, exatamente porque ninguém tem saudosa lembrança de um lugar em que nunca esteve; ninguém, consequentemente, tem saudade de quem nele habita, Jesus e o Pai fazem morada no crente.


“Jesus respondeu e disse-lhe: Se alguém me ama guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada.” (Jo 14.23)


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