“Eu amo os que me amam, e os que de madrugada
me buscam me acharão” (Pv 8.17).
Introdução
Muito se tem falado sobre a necessidade do
conhecimento da exegese bíblica, ou seja, o domínio do conjunto das normas que
sistematizam o trabalho de interpretação do texto bíblico. Embora seja possível
falar-se em exegese profunda: aquela
que exige do exegeta bons conhecimentos dos idiomas originais das Escrituras,
que são o hebraico e o grego (obviamente antigos) cujo domínio pertence aos
eruditos, há um nível mais superficial dessa matéria, ao alcance da maioria dos
interessados em chegar, com alguma segurança, ao conteúdo dos ricos e profundos
textos da Bíblia Sagrada.
Mesmo assim, há exigências para que se saia
da superficialidade de uma leitura, a fim de se atingir, quando não a
profundidade das águas, a limpidez da margem. Essas exigências iniciam-se num
razoável conhecimento da nossa gramática e de seu vocabulário somado a alguma
convivência com a linguagem conotativa ou figurada. Ninguém pode se esquecer de
que a linguagem da Bíblia é um tesouro de linguagem figurada, sobretudo, no
Antigo Testamento e, evidentemente, nos livros poéticos.
O versículo tomado para esta reflexão
(Provérbios 8.17) faz parte desse complexo conotativo. A falta de melhor
observação da linguagem em todo o texto proverbial leva a interpretações
completamente indevidas, as quais semeiam em toda parte o não dito pelo dito.
Será a madrugada um período especialmente
sagrado para que Deus atenda as súplicas dos crentes? Terá o Senhor, por meio
do versículo citado, determinado esse procedimento?
1. PROVÉRBIOS: O LIVRO SAPIENCIAL POR EXCELÊNCIA
Chamam-se sapienciais os livros que têm, de
algum modo, relação com a sabedoria.
São sapiências os livros: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos
Cânticos. A Igreja Católica Romana acrescenta dois outros sapienciais:
Sabedoria e Eclesiástico. Ao lado de Eclesiastes, Provérbios é um livro
claramente proverbial.
Todas essas obras proverbiais utilizaram uma
linguagem conotativa, isso é, poética, figurada, o que exige certo preparo do
leitor para bem compreender os textos.
Antes de se prosseguir na linha de pensamento
adotada, é necessário lembrar que no emprego habitual dos fragmentos bíblicos ocorre
outro problema que precede a incompreensão da linguagem conotativa; trata-se da
contumácia na extrapolação textual: extrai-se um trecho, um versículo ou parte
dele fora do seu próprio contexto, a fim de ser usado como suporte a afirmações
em cujo contexto ele parece caber, mas não cabe. Não há dúvida de que tal
prática é a mãe da eisegese: interpretação segundo a imaginação do próprio
leitor.
Retomando o livro de Provérbios, escrito pelo
sábio rei Salomão, não é difícil reparar a intenção do autor em enfatizar a
necessidade de o homem buscar a sabedoria e admirá-la em sua beleza. Para que
Salomão propôs os seus escritos?
“... para se conhecer
a sabedoria e a instrução; para se entenderem as palavras da prudência; [...]
para o sábio ouvir e crescer em sabedoria, e o instruído adquirir sábios conselhos;
pera entender provérbios e sua interpretação,...” (Pv 1.2-6).
Se apenas forem tomados por referência os
versículos iniciais do livro, não há como ignorar que o autor trabalha mais o
bom senso, como prova da bênção de sapiência que recebera, do que preceitos
divinos ou religiosos. Salomão deixou essa tarefa para os sacerdotes. Claro é
que, sendo Provérbios um livro canônico, seu conteúdo é inspirado por Deus ao
rei, para refletir sobre preceitos sábios que enobrecem o ser humano. Embora
não haja, em todo o texto, explicitamente a “voz de Deus”, Salomão e outros
autores (há mais de um autor para Provérbios, ainda que o destaque seja para o
rei Salomão) indicam o que agrada e o que desagrada o Senhor (9.10; 10.21-22;
15.25, 29; 16.4, 6).
Provérbios revela o magnânimo cumprimento da
promessa de Deus a Salomão. Ao assumir o trono no lugar de Davi seu pai, o rei
orou humildemente a Deus, pedindo sabedoria para bem dirigir a nação de Israel.
(Pv 3.5-14).
A bênção de Deus vai além do que o homem
possa imaginar: além de ser ricamente abençoado com a sabedoria que pediu a
Deus, o rei teve mais riqueza do que qualquer outro rei sobre a Terra!
2. A SABEDORIA PERSONIFICADA
A riqueza intelectual e a sensibilidade de
Salomão para com a vida foram tão profundas que ele enriqueceu todas as
gerações posteriores não só com a bela linguagem poética, mas também com uma
imensurável sabedoria social, política e administrativa, como comprova a
passagem da causa das duas mulheres que brigavam pela maternidade de uma
criança. Evidentemente, apenas uma era a mãe; porém, não havia como saber, tal
era a disputa. A sabedoria dada por Deus a Salomão resolveu o impasse (1Rs
3.16-28). Uma prova da excelência administrativa do rei está registrada no
capítulo 1º de 1Reis: a rainha de Sabá, mulher finíssima, culta e mui rica,
ficou extasiada com tudo quanto viu no reino de Salomão.
Em Provérbios, a sabedoria não é referida,
simplesmente, como um dado natural, ou mesmo aprendido, da inteligência humana:
A palavra assume caráter pessoal, no sentido de ter personalidade, poder de
convencimento de quem a procura, e de, ela própria, tornar sábios os homens.
Em Provérbios, a Sabedoria é tida como um dos
atributos de Deus, inerente à personalidade divina desde a eternidade.
“o Senhor me possuiu
no princípio de seus caminhos e antes de suas obras mais antigas. Desde a
eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra...” (Pv
8.1ss).
3. A SABEDORIA AMA OS QUE A AMAM E LUTAM POR OBTÊ-LA
Assim personificada, fica claro que é a
própria Sabedoria - não o Senhor Deus - quem “ama os que a amam; os que a
buscam de madrugada são os que a acharão” (Pv 8.17).
Ora, buscar a Sabedoria no decorrer da madrugada não implica que o homem tenha um período
do dia, específico para, ajoelhado, clamar por ela. Significa que é necessário
haver um interesse intenso e constante para obtê-la, dada a sua preciosidade em
todas as decisões nesta vida.
4. A SABEDORIA DO ALTO DIFERE DA SABEDORIA TERRENA
O apóstolo Tiago instrui sobre a diferença
entre a posse da “sabedoria” humana e o enchimento da Sabedoria do alto:
“E, se algum de vós
tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não o
lança em rosto; e ser-lhe-á dada. Peça-a, porém com fé, não duvidando;...” (Tg
1.5.6).
Ao
lado da verdadeira Sabedoria está a pretensa sabedoria humana. O próprio Tiago esclarece qual é a sabedoria
humana:
“Essa não é a
sabedoria que vem do alto; mas é terrena, animal e diabólica” (Tg 3.15).
A sabedoria terrena é aquela da qual o diabo
se aproveita para induzir o homem ao pecado e à soberba.
Para ser bem didático, Salomão personifica a
verdadeira Sabedoria, quando lhe dá uma espécie de antropônimo: a Sabedoria.
Realmente é extasiante pensar-se nessa
sabedoria provinda de Deus; ela põe por terra os que se julgam sábios neste
mundo! Pelo que diz o apóstolo Paulo aos irmãos em Corinto, não é difícil
perceber a diferença entre a Sabedoria, dada por Deus aos seus servos e a
pretensa sabedoria dos homens vaidosos.
“E eu, irmãos, quando
fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não fui com sublimidade
de palavras ou de sabedoria. Porque nada me propus saber entre vós, senão a
Jesus Cristo e este crucificado, [...] A minha palavra e a minha pregação não
consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração do
Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos
homens, mas no poder de Deus.” (1Co 2.1-5).
5. A SABEDORIA NÃO SE APODERA; CONVIDA À PARTICIPAÇÃO
O texto de Provérbios apresenta-se
convincente, sem, contudo, dar mostra de intenção persuasiva. O homem é quem
deve amar a Sabedoria, buscá-la, interessar-se por ela. Ninguém que almeja essa
bênção de Deus pode ser indolente, inativo. A Sabedoria que veio a Salomão era
manifesta em seus atos. É assim que Deus age: no homem ativo. O Senhor Jesus não
se apoderou do homem; sempre o convidou à participação. A bênção resulta de
disposição para alcançá-la.
“E dizia a todos: Se
alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz e
siga-me.” (Lc 9.23)
“Eis que estou à
porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa
e com ele cearei, e ele, comigo.” (Ap 3.20).
“Filho meu, atende à
minha sabedoria; e à minha razão inclina os teus ouvidos;...” (Pv 5.1).
“A Sabedoria já
edificou a sua casa, [...] Já deu ordens às suas criadas, já anda convidando
desde as alturas da cidade, dizendo: Quem é simples volte-se para aqui. Aos
faltos de entendimento diz: Vinde, comei do meu pão e bebei do vinho que tenho
misturado. Deixai os insensatos, e vivei, e andai pelo caminho do
entendimento.” (Pv 9.1-6).
Conclusão
Muito há para se trabalhar sobre o tema de
Provérbios. Talvez, o assunto possa ser visto, em outra oportunidade, com o
aprofundamento que merece. Todavia, neste texto, a intenção é conduzir o leitor
a maior responsabilidade no exercício da compreensão dos textos bíblicos,
evitando, por todo custo, que se descontextualize a parte; fato tão recorrente quando
se trata das Escrituras, o que leva, sem dúvida, a falsas interpretações, como
a que se vê, não raramente, em Provérbios 8.17 e em outros fragmentos bíblicos.
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