quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A sabedoria

 




 “Eu amo os que me amam, e os que de madrugada me buscam me acharão” (Pv 8.17).

 

Introdução

Muito se tem falado sobre a necessidade do conhecimento da exegese bíblica, ou seja, o domínio do conjunto das normas que sistematizam o trabalho de interpretação do texto bíblico. Embora seja possível falar-se em exegese profunda: aquela que exige do exegeta bons conhecimentos dos idiomas originais das Escrituras, que são o hebraico e o grego (obviamente antigos) cujo domínio pertence aos eruditos, há um nível mais superficial dessa matéria, ao alcance da maioria dos interessados em chegar, com alguma segurança, ao conteúdo dos ricos e profundos textos da Bíblia Sagrada.

Mesmo assim, há exigências para que se saia da superficialidade de uma leitura, a fim de se atingir, quando não a profundidade das águas, a limpidez da margem. Essas exigências iniciam-se num razoável conhecimento da nossa gramática e de seu vocabulário somado a alguma convivência com a linguagem conotativa ou figurada. Ninguém pode se esquecer de que a linguagem da Bíblia é um tesouro de linguagem figurada, sobretudo, no Antigo Testamento e, evidentemente, nos livros poéticos.

O versículo tomado para esta reflexão (Provérbios 8.17) faz parte desse complexo conotativo. A falta de melhor observação da linguagem em todo o texto proverbial leva a interpretações completamente indevidas, as quais semeiam em toda parte o não dito pelo dito.

Será a madrugada um período especialmente sagrado para que Deus atenda as súplicas dos crentes? Terá o Senhor, por meio do versículo citado, determinado esse procedimento?

 

1.     PROVÉRBIOS: O LIVRO SAPIENCIAL POR EXCELÊNCIA

 

Chamam-se sapienciais os livros que têm, de algum modo, relação com a sabedoria. São sapiências os livros: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos. A Igreja Católica Romana acrescenta dois outros sapienciais: Sabedoria e Eclesiástico. Ao lado de Eclesiastes, Provérbios é um livro claramente proverbial.

Todas essas obras proverbiais utilizaram uma linguagem conotativa, isso é, poética, figurada, o que exige certo preparo do leitor para bem compreender os textos.

Antes de se prosseguir na linha de pensamento adotada, é necessário lembrar que no emprego habitual dos fragmentos bíblicos ocorre outro problema que precede a incompreensão da linguagem conotativa; trata-se da contumácia na extrapolação textual: extrai-se um trecho, um versículo ou parte dele fora do seu próprio contexto, a fim de ser usado como suporte a afirmações em cujo contexto ele parece caber, mas não cabe. Não há dúvida de que tal prática é a mãe da eisegese: interpretação segundo a imaginação do próprio leitor.

Retomando o livro de Provérbios, escrito pelo sábio rei Salomão, não é difícil reparar a intenção do autor em enfatizar a necessidade de o homem buscar a sabedoria e admirá-la em sua beleza. Para que Salomão propôs os seus escritos?

 

“... para se conhecer a sabedoria e a instrução; para se entenderem as palavras da prudência; [...] para o sábio ouvir e crescer em sabedoria, e o instruído adquirir sábios conselhos; pera entender provérbios e sua interpretação,...” (Pv 1.2-6).

 

 

Se apenas forem tomados por referência os versículos iniciais do livro, não há como ignorar que o autor trabalha mais o bom senso, como prova da bênção de sapiência que recebera, do que preceitos divinos ou religiosos. Salomão deixou essa tarefa para os sacerdotes. Claro é que, sendo Provérbios um livro canônico, seu conteúdo é inspirado por Deus ao rei, para refletir sobre preceitos sábios que enobrecem o ser humano. Embora não haja, em todo o texto, explicitamente a “voz de Deus”, Salomão e outros autores (há mais de um autor para Provérbios, ainda que o destaque seja para o rei Salomão) indicam o que agrada e o que desagrada o Senhor (9.10; 10.21-22; 15.25, 29; 16.4, 6).

Provérbios revela o magnânimo cumprimento da promessa de Deus a Salomão. Ao assumir o trono no lugar de Davi seu pai, o rei orou humildemente a Deus, pedindo sabedoria para bem dirigir a nação de Israel. (Pv 3.5-14).

A bênção de Deus vai além do que o homem possa imaginar: além de ser ricamente abençoado com a sabedoria que pediu a Deus, o rei teve mais riqueza do que qualquer outro rei sobre a Terra!

 

2.     A SABEDORIA PERSONIFICADA

 

A riqueza intelectual e a sensibilidade de Salomão para com a vida foram tão profundas que ele enriqueceu todas as gerações posteriores não só com a bela linguagem poética, mas também com uma imensurável sabedoria social, política e administrativa, como comprova a passagem da causa das duas mulheres que brigavam pela maternidade de uma criança. Evidentemente, apenas uma era a mãe; porém, não havia como saber, tal era a disputa. A sabedoria dada por Deus a Salomão resolveu o impasse (1Rs 3.16-28). Uma prova da excelência administrativa do rei está registrada no capítulo 1º de 1Reis: a rainha de Sabá, mulher finíssima, culta e mui rica, ficou extasiada com tudo quanto viu no reino de Salomão.

Em Provérbios, a sabedoria não é referida, simplesmente, como um dado natural, ou mesmo aprendido, da inteligência humana: A palavra assume caráter pessoal, no sentido de ter personalidade, poder de convencimento de quem a procura, e de, ela própria, tornar sábios os homens.

Em Provérbios, a Sabedoria é tida como um dos atributos de Deus, inerente à personalidade divina desde a eternidade.

 

“o Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos e antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra...” (Pv 8.1ss).

 

 

3.     A SABEDORIA AMA OS QUE A AMAM E LUTAM POR OBTÊ-LA

 

Assim personificada, fica claro que é a própria Sabedoria - não o Senhor Deus - quem “ama os que a amam; os que a buscam de madrugada são os que a acharão” (Pv 8.17).

Ora, buscar a Sabedoria no decorrer da madrugada não implica que o homem tenha um período do dia, específico para, ajoelhado, clamar por ela. Significa que é necessário haver um interesse intenso e constante para obtê-la, dada a sua preciosidade em todas as decisões nesta vida.

 

4.     A SABEDORIA DO ALTO DIFERE DA SABEDORIA TERRENA

 

O apóstolo Tiago instrui sobre a diferença entre a posse da “sabedoria” humana e o enchimento da Sabedoria do alto:

 

“E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não o lança em rosto; e ser-lhe-á dada. Peça-a, porém com fé, não duvidando;...” (Tg 1.5.6).

 

 Ao lado da verdadeira Sabedoria está a pretensa sabedoria humana. O próprio Tiago esclarece qual é a sabedoria humana:

 

“Essa não é a sabedoria que vem do alto; mas é terrena, animal e diabólica” (Tg 3.15).

 

A sabedoria terrena é aquela da qual o diabo se aproveita para induzir o homem ao pecado e à soberba.

Para ser bem didático, Salomão personifica a verdadeira Sabedoria, quando lhe dá uma espécie de antropônimo: a Sabedoria.

Realmente é extasiante pensar-se nessa sabedoria provinda de Deus; ela põe por terra os que se julgam sábios neste mundo! Pelo que diz o apóstolo Paulo aos irmãos em Corinto, não é difícil perceber a diferença entre a Sabedoria, dada por Deus aos seus servos e a pretensa sabedoria dos homens vaidosos.

 

“E eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria. Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado, [...] A minha palavra e a minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.” (1Co 2.1-5).

 

 

5.     A SABEDORIA NÃO SE APODERA; CONVIDA À PARTICIPAÇÃO

 

O texto de Provérbios apresenta-se convincente, sem, contudo, dar mostra de intenção persuasiva. O homem é quem deve amar a Sabedoria, buscá-la, interessar-se por ela. Ninguém que almeja essa bênção de Deus pode ser indolente, inativo. A Sabedoria que veio a Salomão era manifesta em seus atos. É assim que Deus age: no homem ativo. O Senhor Jesus não se apoderou do homem; sempre o convidou à participação. A bênção resulta de disposição para alcançá-la.

 

“E dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz e siga-me.” (Lc 9.23)

“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e com ele cearei, e ele, comigo.” (Ap 3.20).

“Filho meu, atende à minha sabedoria; e à minha razão inclina os teus ouvidos;...” (Pv 5.1).

“A Sabedoria já edificou a sua casa, [...] Já deu ordens às suas criadas, já anda convidando desde as alturas da cidade, dizendo: Quem é simples volte-se para aqui. Aos faltos de entendimento diz: Vinde, comei do meu pão e bebei do vinho que tenho misturado. Deixai os insensatos, e vivei, e andai pelo caminho do entendimento.” (Pv 9.1-6).

 

Conclusão

 

Muito há para se trabalhar sobre o tema de Provérbios. Talvez, o assunto possa ser visto, em outra oportunidade, com o aprofundamento que merece. Todavia, neste texto, a intenção é conduzir o leitor a maior responsabilidade no exercício da compreensão dos textos bíblicos, evitando, por todo custo, que se descontextualize a parte; fato tão recorrente quando se trata das Escrituras, o que leva, sem dúvida, a falsas interpretações, como a que se vê, não raramente, em Provérbios 8.17 e em outros fragmentos bíblicos.

 


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