terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A IMPORTÂNCIA DE SABER O QUE SE CANTA


O incômodo é antigo. A vontade de abordar o assunto também. Talvez a oportunidade para tal seja esta, a partir de um excelente e indispensável artigo escrito pelo eminente pastor Renato Vargens (veja blog). Exatamente porque aquele brilhante comentarista se antecipou ao que eu pretendia, sinto-me instigado a dialogar com ele nestas linhas. O tema da nossa conversa? A linguagem nas canções evangélicas modernas.

Tenho, como o pastor Renato e, talvez outros, certo ressentimento por causa do descuido que não poucas igrejas têm para com os hinários oficiais. Fui criado entre esses hinários. Minha mãe nascera numa família presbiteriana; então, cantava sempre as composições inspiradas do hinário Salmos e Hinos. Entretanto, sendo ela batista, passou a nos ensinar o Cantor Cristão. Casada com meu pai, assembleiano, adotou o hinário oficial dessa igreja, a Harpa Cristã. Por isso posso dizer que cresci entre os mais inspirados hinos evangélicos, o que pode até ser causa de certa ranzinzice.

Dizia eu da tristeza de ver que em muitos cultos, em grande parte das igrejas, o hinário oficial foi substituído por composições de qualidade musical duvidosa e letras nada melhores do que isso. Não entrarei, agora, no mérito das estruturas musicais: quero mencionar as letras. Por respeito àquele articulista, não mencionarei exemplos, mas o texto a que me refiro exemplifica muito bem a falta de pudor do letrista.

A questão, aqui, coincide com o que expõe Renato Vargens, sobre certas canções: frivolidade, antropomorfização exagerada do divino, linguagem tendente à sensualidade. Tudo isso é justificado com uma explicação sem graça: desejo de mais intimidade com Deus.

É necessário que se entenda que intimidade não equipara as relações: por mais intimidade que um mordomo possa desfrutar com o rei, os limites são invioláveis. Que se dirá da intimidade com Deus! O mais relevante fator de intimidade com Deus é a oração, não a cantoria. O salmista diz que Deus não despreza um coração contrito (Sl 51.17; Is 57.15).

Canta-se muito uma letra que diz: “Estou apaixonado”. Esse adjetivo é cognato do substantivo “paixão” que, do latim, significa, em primeiro plano, sofrimento. Evidentemente, a palavra assume outros significados, dependendo do contexto.

Na linguagem atual do Brasil, entende-se que o apaixonado entra em sofrimento por não alcançar o bem pretendido, ou lhe devota um amor intenso; porém, esse é um amor erótico (do masculino pelo feminino), ou, em linguagem figurada, a dedicação extrema a familiares (apaixonado pelo filho). Note-se, então, que sempre expressa uma relação entre iguais ou trazidos a esse nível. Se eu disser “sou apaixonado pelo presidente”, sem dúvida, estou fazendo uma hipérbole, um exagero de expressão. Ser apaixonado por assuntos ou por coisas também expressa a hipérbole. Não estou apaixonado por Deus, eu O amo, anseio pela presença do Senhor em minha vida. É uma questão de nível de linguagem.

Já ouvi críticas à linguagem usada nos hinários, ou nas traduções mais clássicas da Bíblia. De fato, nesses casos está empregado um vocabulário mais selecionado, até erudito, contudo, condizente com a nobreza do texto. A “simplificação” da linguagem, pode até ser necessária em muitos casos, entretanto, não autoriza que se despreze o bom vocabulário. No caso das Bíblias, muita “linguagem de hoje” (?) deturpa o texto.

Quando um grupo canta “estou apaixonado por você, Jesus.”, usa uma linguagem bem diferente daquela usada pelo salmista que diz: “minha alma anseia por ti” (Sl 143.6). Qual é mais apropriada para nos dirigirmos Àquele a quem amamos?

O empobrecimento da linguagem mostra o empobrecimento dos costumes, o desprezo pelo conhecimento, a cegueira do Belo. Linguagem empobrecida não é causa em si mesma; é resultado de toda a degeneração intelectual e comportamental das pessoas. Somos criados para o crescimento, não para a degenerescência, ainda que todo exagero deva ser evitado. Nem tanto ao mar; nem tanto à praia. Estamos já encalhando na praia.

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